domingo, 21 de novembro de 2010

Época 2010/2011 - Crónicas

21/11/2010

Opinião | Carta Aberta ao André Villas-Boas

Meu caro Amigo

Esta carta parece, velada ou declaradamente, o resultado do mais puro oportunismo: o André é o mais provável vencedor do Nacional de Futebol da Primeira Divisão e, digo-o sem receio, da Liga Europa; lidera uma das melhores equipas do futebol mundial - e cá estou eu a exibir o virtuosismo de um conhecimento que já é acessível a qualquer português amante do futebol. Ou seja, evitei prudentemente, meses atrás, um prognóstico difícil sobre o seu futuro como treinador de futebol, e venho agora falar, de cátedra, do actual treinador do FC Porto. Se assim fosse, as vozes dos profissionais da injúria não deixariam de retratar-me (desta vez, com razão) como personagem incómoda ou rídicula. Só que, contra a agressividade dos meus críticos, teria o André ao meu lado. De facto, trabalhava o meu amigo na Académica de Coimbra, muito antes dos convites do Sporting e do Porto, e eu já eu lhe escrevia, sustentando que, num clube com as condições necessárias e suficientes, o André surgiria como um treinador de excepcional relevo e manifestando até insuspeitadas potencialidades. Recordo que o surpreendeu o conteúdo da referida carta e foi lesto a telefonar-me: "Gostava de saber por que me vê com um futuro brilhante na profissão de treinador de futebol?". E acrescentou ainda: "É que eu sinto que tenho tanto para aprender!".
Libertando-me de uma linguagem esotérica, frequentemente exibicionista, respondi-lhe: "Porque o meu amigo sabe liderar uma equipa, sabe comunicar com os jogadores que a constituem, sabe ler um jogo e vive de uma tensa e imensa vontade de vitória. Está aqui a base do êxito de um treinador de alta competição. Isto o que se vê, mesmo pela televisão. Com o apoio estrutural de um grande clube e com o que aprendeu com o José Mourinho, o meu amigo decuplicará o talento que mostra." Há poucos dias, numa das nossas conversas telefónicas, o André chegou mesmo a dizer-me: "O professor até acreditou em mim antes de eu acreditar!". Não é bem assim. Eu vejo o desporto e os desportistas com uma teoria que elaborei e que me norteia. Para mim, esta área do conhecimento, mais do que uma Actividade Física, é uma Actividade Humana, onde o físico-biológico se encontra integral mas superado. No futebol, portanto, o jogador deve desenvolver-se em equipa, sem ser reduzido à equipa. E assim o treinador, nos seus momentos de reflexão, poderá levantar, no mais íntimo de si mesmo, esta questão: qual o tipo de pessoa que eu quero que nasça dos jogadores que eu lidero? Reside aqui, no meu modesto entender, o momento essencial do treino.
É evidente que os livros de metodologia do treino (e são milhares, por esse mundo além) pouco se apercebe, da intrínseca influência da preparação intelectual e moral da equipa. E, entre os factores de rendimento, dão ao físico-biológico lugar primacial. Ora, para mim, não só tudo é sistema, como só o sistema é real. Portanto, no treino, há que distinguir para associar e não separar para reduzir. Por isso, antes de tudo o mais, o jogador deve acreditar no que faz e transformar-se na expressão da fé que anima todo o clube, desde o mais humilde associado e funcionário até aos membros da Direcção. A crença gera biologia. O jogador que acredita que é um dos aspectos fundamentais da alma de um clube tem mais força e mais velocidade e mais resitência e mais impulsão, etc., etc. Meu querido Amigo, não lhe falo de um anseio indefinido ou de uma superstição romântica - falo-lhe do espírito que deve animar um departamento de futebol profissional. Hoje, o próprio conhecimento científico é subjectivo-objectivo. O futebolista também está todo em tudo o que faz, mas o que dele sobrevive é a sua vontade de ser mais e de ser melhor.
Nada de novo lhe escrevi nesta carta. É verdade! Tudo isto o meu amigo sabe, designadamente através da sua prática diária. Eu não passo de um simples teórico mas que, há 42 anos, vem ensinando filosofia do desporto e aprendendo com o André e um ou outro colega seu, que fazem o favor de dissipar muitas das minhas dúvidas. O André está, entre os melhores treinadores que eu conheci e conheço, ao lado dos que maior sensibilidademanifestam à necessidade de repensar o treino, à luz do pensamento conmplexo. Por isso, também no futebol a cultura é o primeiro factor de desenvolvimento. Lia um Camus, um Malraux, uma Hanna Arendt, uma Marua Zambrano, um Vergílio Ferreira, um Saramago, um Jorge Luís Borges e tantos mais; aprenda a saborear a arte de poetas como Pessoa, ou Sebastião da Gama, ou Sofia, ou Herberto Helder, ou Torga, ou Régio, ou Drummond de Andrade; escute atentamente a mensagem dos filósofos e dos sociólogos - e vai começar a saber mais de futebol! O maior defeito dos técnicos da FIFA e da UEFA é abusarem de uma aturdidora profusão de palavrar e sentirem-se incapazes das grandes sínteses que tentam compreender o humano. Ora, o futebol é, repito, uma Actividade Humana e onde, portanto, a vida tem mais força do que a lógica de uma táctica, por mais elaborada que ela seja. Estudar futebol é, sobre o mais, aprender com a vida.
Por isso, meu amigo, se me der essa honra, vamos continuar a falar ao telefone. Para eu saber mais de futebol? Não sei se em Portugal são muitos os estudiosos que tenham lido mais obras, sobre futebol, do que eu. Na minha biblioteca de, em números redondos, 3000 livros contam-se às dezenas! Eu consigo aprendo muito de futebol porque falamos de ciências de um novo tipo. Quando um jogo começa, qual a ciÊncia que explica o que se está a passar no campo? Eu chamo-lhe ciência da motricidade humana. Mas há tanta gente que me lança olhar misericordioso, quando me ocupo destes assuntos. Resta-me a sua compreensão e a de alguns amigos (como o director deste jornal, que é também homem culto e solidário). No meu caso, pode crer, a sua compreensão revigora-me: é que eu estou convicto que está a nascer, no meu amigo, um dos grandes treinadores do futebol português - e, neste mundo globalizado, que é o nosso, do futebol internacional. Por fim, não escondo que o FC Porto de Jorge Nuno Pinto da Costa é o melhor seminário para ampliar e aprofundar o muito que o meu amigo é. Aconteceu o mesmo com o Dr. José Mourinho. Parecendo que não, a história deste Clube, hoje, não é carismática, é estrutural.

Seu
Manuel Sérgio

by Manuel Sérgio, in Jornal "A Bola", 20 de Novembro de 2010

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